Esperança para os
“ossos de cristal”
Tratamento pioneiro
iniciado no Canadá começa a ser
aplicado no Brasil, com resultados animadores para
crianças portadoras de doença genética.
aplicado no Brasil, com resultados animadores para
crianças portadoras de doença genética.
Moacyr Oliveira Filho
Em
1995, o menino canadense Bernard Theriault, então com 6 anos, não andava. Um
ano depois de iniciar um tratamento com pamidronato - uma substância ativa da
família dos bisfosfonatos, comercializada pela Novartis com o nome de Aredia, e
se submeter a uma cirurgia para colocação de hastes telescópicas de titânio nos
fêmures, começou a andar. Hoje, aos 11 anos, ele é uma criança normal. Anda,
corre, brinca, dança.
O
peruano Hugo Rodrigo Castillo começou a receber o tratamento com apenas 13 dias
de vida. É o paciente mais jovem do mundo. Depois de cinco aplicações da droga,
sua densidade óssea teve um aumento superior a 300%.
A
brasiliense Isadora Carvalho de Oliveira, de 9 anos, iniciou o tratamento com
pamidronato em agosto do ano passado, no Canadá. Depois de ter recebido três
infusões do medicamento, sua densidade óssea mais do que dobrou, com um aumento
superior a 100%. Além disso, pela primeira vez na sua vida, ela, que já teve
mais de 60 fraturas, passou exatos nove meses sem quebrar nenhum osso. Nos
próximos meses, Isadora irá fazer, no Canadá, a operação para colocar as hastes
de titânio nos fêmures e, a expectativa dos médicos canadenses, é de que
aproximadamente em três semanas ela possa começar a andar.
Esses
são três exemplos dos resultados positivos do tratamento pioneiro com
pamidronato em crianças portadoras de osteogenesis imperfecta severa (oi) que
vem sendo realizado, desde 1992, no Shriners Hospital for Children, de
Montreal, no Canadá.
Coordenado
pelos médicos Francis Glorieux, um belga de 60 anos, e seu assistente Horácio
Plotkin, um argentino de 35 anos, o estudo começou a ser feito, em 1992, com um
grupo de 30 crianças. Oito anos depois, mais de 200 crianças de todo o mundo,
entre elas duas brasileiras, já iniciaram o tratamento no Canadá. O Protocolo
de Montreal está sendo aplicado, também, em outros 27 países, ampliando o
espectro da pesquisa.
No
Brasil, essa experiência está sendo realizada em aproximadamente 25 crianças em
cinco instituições: o Hospital das Clínicas de São Paulo, sob a coordenação dos
ortopedistas Roberto Guarniero e Eduardo Meireles, do Instituto de Ortopedia e
Traumatologia e, no Departamento de Endocrinologia Óssea, com os médicos Pedro
Henrique Silveira Côrrea e Maria Odete Ribeiro Leite; no Hospital Albert Sabin,
em Fortaleza, com o ortopedista Nilo Dourado; no Hospital Central da
Aeronáutica, com o ortopedista Nelson Foggiato da Silveira, e no Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, com as geneticistas Simone Karam e Temis Félix. Em
Brasília, a Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor por enquanto aplica o
tratamento em uma única criança, sob a coordenação do geneticista Carlos Speck.
O Sarah pretende iniciar, ainda este ano, um outro grupo de crianças para
receber o medicamento, depois de concluir a adaptação do Protocolo de Montreal
às suas condições objetivas.
Resultados
preliminares indicam que praticamente todas as crianças que estão recebendo o
tratamento apresentaram sinais de melhora na densidade óssea e na sua
mobilidade.
Para
que o pamidronato seja potencializado no organismo dos pacientes e possa produzir
os efeitos esperados é fundamental que as crianças consumam, no mínimo, mil mg.
diárias de cálcio, de preferência por meio de dietas alimentares. “O
pamidronato funciona como um veículo para ajudar a fixar o cálcio no osso. Se o
organismo não possuir uma dose mínima adicional de cálcio para ser
transportada, os efeitos do medicamento podem ser reduzidos. Por isso, a dieta
alimentar de cálcio suplementar é muito importante”, explica Plotkin. Além
disso, os pacientes com oi devem se submeter a programas especiais de
fisioterapia e hidroterapia para fortalecer a musculatura e melhorar a
mobilidade.
A
equipe da Unidade Genética do Shriners Hospital for Children descobriu,
analisando as biópsias ósseas de portadores de oi, que havia um aumento da
destruição dos ossos como consequência das longas imobilizações provocadas
pelas fraturas sucessivas. “Como já sabíamos que o pamidronato, utilizado em
casos de câncer ósseo, era eficiente para freiar esse processo destrutivo,
decidimos testá-lo nos pacientes com oi”, conta Glorieux. “Os resultados foram
melhores do que se esperava - aumento da densidade óssea, redução da incidência
de fraturas, diminuição da dor no osso e aumento da mobilidade geral dos
pacientes”, completa.
A
equipe da Unidade Genética do Shriners, se prepara para iniciar, ainda este
ano, a aplicação do zolendronato, uma outra substância, derivada do
pamidronato, porém 850 vezes mais potente, que está em fase final de testes
pelo laboratório que produz esses medicamentos.
Uma doença rara e ainda sem cura
A
osteogenesis imperfecta é uma doença de origem genética, caracterizada pela
fragilidade dos ossos, em função da má formação do seu tecido conectivo. Por
isso, ela é conhecida como a “doença dos ossos de cristal”. Seu principal
sintoma é a ocorrência de sucessiva, e normalmente espontâneas, fraturas,
principalmente dos ossos longos.
Os
portadores da doença podem apresentar, também, deformações do crânio, face
triangular, baixa estatura, dentes frágeis, escolioses na coluna, nas pernas e
nos braços, escleróticas azuladas, perda de audição, cansaço extremo e sudorese
excessiva. Nem sempre todos esses sintomas estão presentes numa mesma pessoa.
A
osteogenesis imperfecta pode ser classificada em, pelo menos, quatro tipos
diferentes. Ela pode acontecer na forma mais grave, que provoca a morte do bebê
no útero materno ou logo após o nascimento, até formas muito leves, que podem,
inclusive, se manifestar tardiamente. Na maioria dos casos, a fragilidade dos
ossos e as deformidades provocadas pelas fraturas constantes impedem os
portadores de andar normalmente.
A
osteogenesis imperfecta é uma doença rara. Embora questionadas pelos
especialistas, devido ao pouco conhecimento a seu respeito e às dificuldades de
diagnóstico, as estatísticas comumente utilizadas apontam que ela atingiria 1 a
cada 20 mil nascidos vivos. Ou seja, 0,005% da população mundial. No caso do
Brasil, por esses números, teríamos cerca de 8 mil pessoas afetadas. Em
Brasília, por exemplo, a Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor contabilizou
em seus arquivos, nos últimos vinte anos, duzentos registros da doença.
Ainda
não existe cura para a osteogenesis imperfecta. Todas as experiências
anteriores já realizadas, com mais de 25 medicamentos, falharam. O estudo de
Montreal é o único que tem apresentado resultados concretos. Mesmo assim, seus
autores garantem que isso ainda não é a cura para a patologia. “Esse tratamento
não cura a doença, mas sim tenta estancar os seus efeitos e melhorar a
qualidade de vida dos afetados por ela”, explica Francis Glorieux. “O
pamidronato não é a cura para a osteogenesis imperfecta porque ele não altera o
defeito genético que causa a doença”, acrescenta Horácio Plotkin.
A
equipe de Glorieux, atualmente uma das maiores autoridades mundiais em oi,
pretende avançar ainda mais. “Estamos trabalhando numa outra linha de
investigação, a da terapia genética, para tentar descobrir a origem efetiva
dessa enfermidade e como combatê-la”, conta. “Aí sim estaremos avançando no
rumo da cura da oi”, acredita.
Abrindo caminhos pela Internet
A
grande rede mundial de computadores teve um papel fundamental na organização
dos portadores de oi, seus familiares e médicos, no Brasil. Afinal, a Internet
acabou se transformando num dos mais importantes veículos para que essas
pessoas se encontrassem e começassem a se organizar e a trocar experiências e
informações.
A
pioneira desse processo foi a antropóloga da Universidade de São Paulo, Rita
Amaral, portadora de oi, que criou, organizou, disponibilizou e mantém, desde
1998, uma página brasileira de osteogenesis imperfecta na Internet, no endereço
www.aguaforte.com/oi.
Foi
a partir dessa página que as pessoas ligadas ao problema começaram a se
encontrar, trocar informações e experiências e conhecer os avanços científicos
relacionados com a oi. Foi nesse site que se tomou conhecimento, pela primeira
vez no Brasil, da pesquisa dos médicos do Shriners Hospital for Children, e foi
por meio dele que as famílias das duas crianças brasileiras que iniciaram o
tratamento no Canadá, fizeram os primeiros contatos com os médicos, marcaram
suas consultas e organizaram suas viagens.
Essa
página possui, também, links que permitem aos interessados inscrever-se em três
listas de discussão sobre a oi - uma em português, administrada pela própria
Rita Amaral, outra em espanhol e outra em inglês - e receber diariamente
centenas de mensagens de todas as partes do mundo com informações importantes
sobre a doença e, principalmente, os avanços das pesquisas científicas.
As
pessoas que se conheceram nesse site, acabaram por organizar, em dezembro do
ano passado, a Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta - ABOI que,
atualmente, já conta com 129 associados de todo o país, entre portadores,
familiares e médicos. Com a fundação da ABOI, o site original acabou se
transformando, também, no site oficial da entidade, a partir de onde qualquer
pessoa pode conhecer os seus estatutos, os seus planos, acessar um catálogo de
médicos brasileiros com experiência em oi e se associar.
O
mais intrigante de tudo isso é que nem mesmo renomados médicos brasileiros
sabiam da existência da pesquisa realizada pela equipe da Unidade Genética do
Shriners Hospital for Children, apesar dela ter sido publicada, pela primeira
vez, em outubro de 1998, no The New England Journal of Medicine, ou mesmo do
tratamento com pamidronato. Não fosse a insistência dos familiares das crianças
que foram ao Canadá e dos organizadores da ABOI, talvez esse tratamento ainda
demorasse alguns anos para começar a ser aplicado no Brasil.
A
Internet, portanto, acabou, ainda que indiretamente, ajudando a abrir uma nova
esperança para as crianças brasileiras portadoras de osteogenesis imperfecta e,
mais do que isso, oferecendo à medicina brasileira o acesso a um importante
avanço científico no tratamento dessa doença.
A década do osso e da articulação
A
Organização Mundial de Saúde elegeu a década de 2000-2010 como a Década do Osso
e da Articulação. A partir deste ano, a OMS pretende desencadear uma campanha
internacional, com o desenvolvimento de diversas ações e inciativas,
principalmente nos países em desenvolvimento, voltadas para apoiar estudos e
pesquisas relacionadas com as doenças músculo-esqueléticas.
Embora
os principais alvos da campanha sejam a osteoporose, as doenças reumáticas, as
lombalgias e as lesões provocadas por acidentes de trânsito, a ABOI pretende
aproveitar a oportunidade para motivar os dirigentes da OMS no Brasil e outras
autoridades da área de saúde a incluir a osteogenesis imperfecta entre as
preocupações das ações dessa campanha.
Entre
os planos da ABOI estão a edição de uma cartilha sobre a oi, com o objetivo de
mostrar às crianças em idade escolar como conviver com seus colegas portadores
da doença, um folder de apresentação da entidade, com informações básicas sobre
a oi, e a realização de um Congresso Nacional de Osteogenesis Imperfecta,
programado para julho do ano que vem, onde se pretende reunir portadores,
familiares e médicos de todo o país. Nesse encontro haveria um painel com os
médicos brasileiros que estão aplicando o tratamento com pamidronato, tendo
como convidado especial o dr. Horácio Plotkin, que faria uma apresentação dos
resultados e dos avanços da pesquisa feita no Canadá.